Wednesday, February 11, 2009

PORQUE GOSTO TANTO DO UNÚTIL

Às vezes, muitas vezes, pergunto-me se tenho direito a tanta coisa inútil com que teço a vida e de que gosto muito.

Coisas como fazer pegas de cozinha, casaquinhos minúsculos de bebés, andar aí pelo bairro porque é bom, ser uma avó que mais ou menos só serve para brincar e ser feliz, ser a mulher do Manel sem lhe cozer as meias, nem arrumar a carteira, nem a secretária, viver esta relação como um tempo de namoro, gostar de ver com ele um filme (ou também sem ele), discutir ideias e raramente estar de acordo, surpreender-me e sorrir (sorriso bem aberto) quando o vejo ao longe,fazer um chá para as amigas, ainda que os meus bolos geralmente caiam no chão, mas depois dá-se-lhes uma voltinha, tenho prática, escrever postais, mesmo postais,
por toda este gosto pela inutilidade, não resisto a transcrever do Pe Tolentino Mendonça o artigo que hoje encontrei. E fiquei bem contente. como se ainda precisasse que alguém me dissesse que o inútil vale.
E qual é a utilidade de um abraço forte?
De um beijo?
De uma mensagem para dizer Bom Dia?
De uma boa relação?
E as bananas que a A. foi comprar para o Manel só porque ele disse que gostava?
E os afectos?

Sei, sei mesmo que somos salvos e libertos pelo inútil.
A propósito, este sol.

Vou ao Jardim da Estrela. Devagar.
E agora alguns o tal artigo:

«O elogio do inútil

Porque é o inútil tão importante? Porque o inútil é o subtrair-se à ditadura das finalidades que acabam por nos desviar de um viver autêntico. E a inutilidade é um viver perto do ser. Ela dá-nos acesso à polifonia da vida, na sua variedade, nos seus contrastes, na sua realidade densa. A polifonia da vida é a sua inteireza, a sua globalidade. A renúncia à exclusividade do útil para abraçar o inútil abre-nos a ela.

Jesus é o Mestre do inútil! Quando lemos os Evangelhos a partir desta chave, encontramos o seu desenho contínuo nas palavras de Jesus. Ele reconduzia cada um a fazer do obstáculo uma oportunidade para o encontro: e, no fundo, para uma abertura fundamental a uma vida segundo o próprio ser. Por isso em Lucas 12,22, Jesus desafia os discípulos:

“É por isso que vos digo: não vos preocupeis quanto à vossa vida, com o que haveis de comer, nem quanto ao vosso corpo com o que haveis de vestir, pois a vida é mais que o alimento, e o corpo é mais que o vestuário. Reparai nos corvos, não semeiam nem colhem; não têm despensas nem celeiros, e Deus alimenta-os. Reparai nos lírios, como crescem. Não trabalham nem fiam, não são úteis; pois eu digo-vos: bem Salomão em toda a sua glória se vestiu como um deles”.

Temos uma vida espiritual muito burocrática. Vivemos como funcionários e quando morremos passamos a defuntos, isto é, aqueles que já não tendo função continuam a ser descritos a partir de uma função. R
Revemo-nos nos versos que Alexandre O’Neill escreveu em «Adeus português»:

“... nesta cadeira
onde passo o dia burocrático
o dia-a-dia da miséria
que sobe aos olhos vem às mãos
aos sorrisos
ao amor mal soletrado
à estupidez ao desespero sem boca
ao medo perfilado
à alegria sonâmbula à vírgula maníaca
do modo funcionário de viver”.



Muitas vezes a oração surge ainda como espaço útil, e não como o lugar da abertura gratuita e essencial, (...). Não escapamos ao calculismo. Vivemos também aí, a nível da vida espiritual, de pé atrás. Como Sara, a mulher de Abraão, ficamos escondidos atrás do pano da tenda a sorrir baixinho, ironicamente, porque não acreditamos que seja possível a promessa. Adaptamos, mesmo a nível espiritual, um pragmatismo cheio de utilidade. Há uma página no Diário de Sebastião da Gama que nos aponta o dedo:

“A gente tem vergonha de beijar tudo; de amar as flores; de dar um passeio. Se beija uma árvore, é parvo; se traz uma flor na mão é maricas; se se enternece é fraco; se vai a qualquer parte para passear e ver o mundo, faz constar que foi em viagem de estudo ou em viagem de negócios; temos vergonha de ser sinceros, de que nos creiam parvos, ou maricas ou fracos, ou lúdricos, ou estroinas; e então perdemos o melhor da nossa vida; as nossas intenções, as nossas intenções mais belas”.

É preciso perceber como a inutilidade abre clareiras ao próprio ser e como precisamos delas para poder experimentar a plenitude.»

José Tolentino Mendonça

in O elogio da inutilidade

30.05.2008

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